APOCALIPSE NOW – MITO E VALOR




Escrito por: Bóris Yellnikoff

Durante dez anos um sonho de Orson Welles foi literalmente cozinhado com Francis Ford Coppola. O roteiro de John Milius foi imaginado na tela por Welles em 1939, que abandonou por não encontrar financiador temerário à altura. Baseado em Heart ofdarkness / Coração da treva de Joseph Conrad, seria uma parábola sobre o imperialismo. 

No livro, o capitão de um navio, O Marlow, é contratado por uma companhia de borracha para localizar, no Congo Belga, um certo agente Kurt, a quem um longo isolamento da civilização o transformou num selvagem.No filme, a ação é transposta no Vietnã: O capitão se torna Benjamin Willard, encarregado pelo Pentágono da missão de matar o coronel Walter Kurtz, ideologicamente herético. Na verdade, entre a concepção de Welles e a realização de Coppola, passaram-se trinta anos. Além de continuar sendo uma parábola sobre o imperialismo, foi acrescentada a metáfora acerca dos mitos e dos valores inculcados por uma ideologia. Cretinismos pedagógicos à parte, uma metáfora exclui toda a analogia e toda a exegese. Podemos decompô-la como ao vitrilho de um caleidoscópio. Entretanto, não é preciso ser profundo para fazer compreender Apocalipse Now.



Apesar de alguns analistas de carreira terem sugerido, pedantemente, uma olhada em The golden bought / A rama dourada de Sir James Frazer e em The hollow men / Os homens ocos de T. S. Eliot, é absolutamente desnecessário. A não ser que se entenda Frazer ao contrário (o que seria mais lógico). Trata-se da decomposição do irracionalismo perpetuado por uma ideologia que torna a verdade e o bem uma construção daqueles a quem essa verdade e esse bem servem, cujos interesses, é claro, estão além da concepção “universal” do Mal indestrutível que se esconde no coração do homem. Trata-se da desmistificação do rito e do mistério que giram em torno das coisas sem margem de discussão: o mito e o dogma.

Willard e Kurtz são duas faces da mesma moeda, criados a semelhança e imagem do fascínio. Ambos possuem uma fé, uma paixão, sem que seja preciso existir na realidade. O irracional pelo irracional perfaz a duplacidade. Ao matar Kurtz, Willard nada mais faz que torna-se, também, um mito, corroído pelo mistério. Seu esforço para conhecer o mito (o herético Kurtz) o faz apropriar-se de algo. E aquilo  de que se apodera sua inteligência se torna infalível e fatalmente privado de encanto: como o outro destruído, transforma-se na nova essência do mistério. O horror que ele viu, então, apenas uma hipótese do irracional, excluídas as alternativas das relações reais e históricas de causa e efeito, guerra e paz. O horror é tão somente a ignomínia da inteligência e da razão, cuja maior infâmia consiste em traçar metas visando a verdade e o bem, abolindo com isso todas as satisfações acerca da destruição dos dogmas. O ciclo se fecha com a reentronização da ideologia, cuja essência não guarda nenhuma realidade, mas com a ilusão de realidade. , pois ela estimula, dá fé e inculca valor. Tanto Kurtz como Willard fazem suas viagens pelos confins da alucinação. Pode-se ver aí a ironia, nunca moralidade.
  
Se o sonho de Welles não é idêntico à realização de Coppola é uma questão de pouca importância. Apocalipse Now, inegavelmenten é o grande exemplo de um realizador que se pode dar ao luxo de ser crítico como Welles.



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