HÉRCULES -- PARTE 4 -- FINAL




E com essa parte, chega “ao fim” a transcrição sobre Hércules, as linhas a seguir são das páginas 123 á 135. Resolvi não colocar o “estudo do umbigo” que vem depois por não achar algo tão complementar. Mas caso seja de interesse nos comentários, eu posso colocá-lo em outro post. Em geral essa diversificação de conteúdo tem gerado views bons frutos, além de ser sempre bom passar conhecimento como esse adiante.




4 — gestas independentes do ciclo anterior; e 5 — ciclo da morte e da apoteose do herói.

Expostas as aventuras principais de Héracles, vinculadas ou não aos Doze Trabalhos, vamos agora acompanhá-lo no denominado ciclo da morte e da apoteose.
Até o momento, como se pôde observar, apesar de nossos esforços em imprimir uma certa ordem na vida atribulada e nas gestas, por vezes, bastante desconexas do herói, tivemos que fazer concessão ao "mito", e à sua intemporalidade, antecipando aventuras e adiando outras. Felizmente, a partir do ciclo da morte e da apoteose, o mitologema do filho de Alcmena segue em linha mais ou menos reta, partindo de Dejanira, passando por Íole e Ônfale, e terminando nos braços da divina Hebe. É esse itinerário de liberação do inconsciente castrador materno e do encontro da anima que vamos perseguir. Diga-se, a bem da verdade, que esse cosimento do mito e de suas inúmeras variantes se deve, antes do mais, aos poetas trágicos que, coagidos a imitar "uma ação séria e completa, dotada de extensão" e com duração de "um período do sol" (Arist. Poética, 1449b), souberam dar unidade ao extenso drama final do herói. Pois bem, o fio condutor desse drama é Dejanira e a tragédia, que elaborou a síntese, foi escrita por Sófocles, Traquínias, infelizmente pouco citada pelos que se dedicam ao Teatro Grego.



O casamento com Dejanira, viu-se na catábase do herói em Busca do Cão Cérbero, foi acertado entre Héracles e Meléagro. A séria dificuldade para obter a mão da princesa, isto é, a luta com o rio Aquelôo, já foi por nós exposta no Vol. I, p. 260-261. Após as núpcias, Héracles permaneceu com a esposa por algum tempo na corte de seu sogro Eneu. Perseguido, todavia, pela fatalidade, matou involuntariamente ao pequeno copeiro real, Êunomo, filho de Arquíteles, parente de Eneu. Embora aquele tivesse perdoado ao herói a morte do filho, Héracles não mais quis ficar em Cálidon e partiu com Dejanira e com o filho Hilo, ainda muito novinho. Foi durante essa viagem em direção ao exílio em Tráquis, porque, segundo uma variante, o filho de Zeus fora expulso do reino de Eneu, que o herói travou uma terceira e derradeira luta com Nesso. Esse Centauro habitava as margens do rio Eveno e exercia o ofício de barqueiro.
Apresentando-se Héracles com a família, primeiramente o lascivo Centauro o conduziu para a outra margem, e, em seguida, voltou para buscar Dejanira. No meio do trajeto, como se recordasse de uma grave injúria de Héracles, tentou, para vingar-se, violar Dejanira que, desesperada, gritou por socorro. O herói aguardou tranqüilamente que o barqueiro alcançasse terra firme e varou-lhe o coração com uma de suas flechas envenenadas com o sangue da Hidra de Lerna. Nesso tombou e, já expirando, entregou a Dejanira sua túnica manchada com o sangue envenenado da flecha e com o esperma que ejaculara durante a tentativa de violação. Explicando-lhe que a túnica seria para ela um precioso talismã, um filtro poderoso, com a força e a virtude de restituir-lhe o esposo, caso este, algum dia, tentasse abandoná-la.
Com a esposa e o filho chegou finalmente a Tráquis, na Tessália, onde reinava Ceix, sobrinho de Anfitrião. Foi durante sua permanência na corte de seu "primo" Cêix que o herói teve que enfrentar um sério dissabor. Como Êurito, rei de Ecália, "o mais hábil dos mortais no arco", tivesse desafiado a Grécia inteira, prometendo a mão de sua filha Íole a quem o vencesse (veja-se nisso a disputa da mão da princesa), Héracles resolveu competir com seu ex-mestre no manejo do arco e o venceu. Não tendo o rei cumprido a promessa, porque, pessoalmente, ou por conselho de todos os filhos, exceto Ífito, temesse que o herói viesse novamente a enlouquecer e matasse a Íole e os filhos que dela tivesse, Héracles resolveu, como sempre, vingar-se.
A respeito dessa guerra de Héracles contra Êurito há várias versões e variantes. Vamos seguir aquela que nos parece mais lógica. Face, pois, à recusa do rei de Ecália, o herói invadiu a cidade e incendiou-a, após matar Êurito e seus filhos, com exclusão de Ífito e Íole, de quem fez sua concubina. Ífito, que herdara o famoso arco paterno, presente de Apolo a seu pai, partira para Messena, onde, na corte do rei Orsíloco, tendo se encontrado com Ulisses, resolveram ambos, como penhor de amizade, trocar as armas: o esposo de Penélope presenteou Ífito com sua espada e lança e este deu a Ulisses o arco divino com o qual, diga-se logo, o herói da Odisséia matará, "bem mais tarde", os pretendentes.
Quando Ulisses encontrou Ífito na cidade de Messena, este andava à procura de um rebanho de éguas ou de bois, que Héracles havia furtado ou, segundo outra versão, que o avô de Ulisses, Autólico, o maior de todos os ladrões da mitologia heróica, havia roubado e confiado a Héracles. Este, interrogado por Ífito, não só se recusou a entregar o rebanho, mas ainda o assassinou. Relata uma outra variante que Héracles era apenas suspeito do roubo e que Ífito o procurara para pedir-lhe ajuda na busca do armento. O herói prometeu auxiliá-lo, mas, tendo enlouquecido pela segunda vez, o lançara do alto das muralhas de Tirinto.
"Dizem que sou louco, por pensar assim
Se sou muito louco, por eu ser feliz
Mas louco é quem me diz
E não é feliz"
Recuperada a razão, o herói dirigiu-se a Delfos e perguntou à Pítia como poderia, dessa feita, purificar-se. Esta simplesmente se recusou a responder-lhe. Ferido de hýbris, o filho de Alcmena ameaçou saquear o santuário e, para provar que não estava gracejando, apossou-se da trípode sagrada, sobre que se sentava a Pitonisa, e disse-lhe que iria fundar em outro local um oráculo novo, a ele pertencente. Apolo veio imediatamente em defesa de sua sacerdotisa e travou-se uma luta perigosa entre os dois. Zeus interveio e os separou com seu raio. Héracles devolveu a trípode, mas a Pítia viu-se coagida a dar-lhe a "penitência" pela morte de Ífito e outras "faltas" ainda não purgadas. Para ser definitivamente purificado, deveria vender-se como escravo e servir a seu senhor por três anos; o dinheiro apurado com a transação seria entregue à família de Ífito como preço de sangue. Comprou-o a rainha da Lídia, Ônfale, por três talentos de ouro.
Durante todo esse tempo, Dejanira permaneceu em Tráquis e o herói levou Íole como sua concubina. A respeito da nova senhora de Héracles existem duas versões. Originariamente, o mito de Ônfale parece localizar-se na Grécia, mais precisamente no Epiro, onde ela aparece como epônima da cidade de Onfálion. Muito cedo, porém, o mito foi deslocado para a Lídia, onde se revestiu de opulenta e pitoresca indumentária oriental, ampla e sofregamente explorada pelos poetas e artistas da época helenística. Com deslocamento igualmente de um nome próprio grego, a lindíssima Ônfale passou a ser filha de Iárdano, rei da Lídia. Segundo outros autores, a princesa seria filha ou viúva do rei Tmolo, que lhe deixara o reino. Sabedora das proezas de seu escravo, impôs-lhe, basicamente, quatro trabalhos, que consistiam em limpar-lhe o reino de malfeitores e de monstros. O primeiro deles foi contra os Cercopes, coletivo para designar dois facínoras que impestavam a Lídia, Euríbates e Frinondas, também chamados Silo e Tribalo, filhos de Téia, uma das filhas de Oceano. Téia, aliás, que lhes apoiava o banditismo, mais de uma vez, os pôs de sobreaviso contra um certo herói, chamado Malampàgo$ (Melampygos), "Melampigo", isto é, "de nádegas escuras", vale dizer, com as nádegas cobertas de pêlos negros, que, para os antigos gregos, era um sinal de força. Altíssimos e de uma força descomunal, assaltavam os viajantes e, em seguida, os matavam. Um dia em que Héracles dormia à beira de uma estrada, os Cercopes tentaram acometê-lo, mas o herói despertou e após dominar os filhos de Téia, os amarrou de pés e mãos e prendeu cada um deles na ponta de um longo varal. Colocou o pesado fardo sobre os ombros, como se fazia com os animais que se levavam ao mercado e encaminhou-se para o palácio de Ônfale. Foi, nessa posição, que Silo e Tribalo, vendo as nádegas de Héracles, compreenderam a profecia de sua mãe e pensaram num meio de libertar-se. Descarregaram sobre o herói uma saraivada tão grande de chistes e graçolas apimentadas, que Héracles, coisa que há muito não experimentava, foi tomado de um incrível bom humor e resolveu soltá-los, sob a promessa de não mais assaltarem e matarem os transeuntes.

O juramento, entretanto, não durou muito e os Cercopes voltaram à sua vida de pilhagem e assassinatos. Irritado, Zeus os transformou em macacos e levou-os para duas ilhas que fecham a baía de Nápoles, Próscia e Ísquia. Seus descendentes aí permaneceram e, por isso, na antigüidade essas duas ilhas eram denominadas Pithecüsae, "Ilha dos Macacos". A segunda tarefa consistia em libertar a Lídia do cruel Sileu, filho de Posídon. Sileu era um vinhateiro, que obrigava os transeuntes a trabalhar de sol a sol em suas videiras e, como pagamento, os matava. Héracles colocou-se a seu serviço, mas, em vez de cultivar as videiras, arrancou-as a todas e se entregou a todos os excessos. Terminada a faina, matou Sileu com um golpe de enxada. Segundo a tradição, Sileu possuía um irmão, chamado Diceu, o Justo, cujo caráter correspondia ao significado de seu nome. Após a morte do vinhateiro, o herói hospedou-se na casa de Diceu, que criara e educara uma sobrinha muito bonita, filha de Sileu. Enfeitiçado pela beleza da moça, o herói a desposou. Tendo se ausentado por algum tempo, a jovem esposa, não suportando as saudades do marido e, julgando que ele não mais voltaria, morreu de amor.


Tudo tem uma explicação mesmo--

Regressando, o herói, desesperado, quis atirar-se a qualquer custo na pira funerária da mulher, sendo necessário um esforço sobre-humano para dissuadi-lo de tão tresloucado gesto.  O terceiro trabalho imposto pela soberana da Lídia tinha por alvo a Litierses, filho de Midas, e denominado o Ceifeiro maldito. Hospedava gentilmente todo e qualquer estrangeiro que passasse por suas terras e, no dia seguinte, convidava-o a segar o trigo em sua companhia. Se recusasse, cortava-lhe a cabeça. Se aceitasse, tinha que competir com ele, que saía sempre vencedor e igualmente decapitava o parceiro, escondendo-lhe o corpo numa paveia.
Héracles aceitou-lhe o desafio e tendo-o vencido e mitigado com uma canção, o matou. Uma variante ensina que o herói resolveu matar Litierses, porque este mantinha por escravo a Dáfnis, que percorria o mundo em busca de sua amante Pimpléia, raptada pelos piratas. Ora, como Litierses a houvesse comprado, iria fatalmente matar ao pastor Dáfnis, não fora a intervenção do herói, que, além do mais, após a morte do Ceifador maldito, entregou-lhe todos os bens a Dáfnis e Pimpléia.


A quarta e última tarefa consistia em livrar a Lídia dos Itoneus, que constantemente saqueavam o reino. Héracles moveu-lhes guerra sangrenta. Apoderou-se de Itona, a cidade que lhes servia de refúgio; após destruí-la, trouxe todos os sobreviventes como escravos.
Face a tanta coragem, pasma com gestas tão gloriosas e vitórias tão contundentes, Ônfale mandou investigar as origens do herói. Ciente de que era filho de Zeus e da princesa Alcmena, de imediato o libertou e se casou com ele, tendo-lhe dado um filho, chamado Lâmon ou, segundo outras fontes, seriam dois os filhos de Héracles com Ônfale: Aqueles (Agelau) e Tirseno. A partir desse momento, terminaram os trabalhos do filho de Zeus e Alcmena. Todo o tempo restante do exílio, agora doce escravatura, Héracles o passou no ócio, nos banquetes e na luxúria. Apaixonada pelo maior de todos os heróis, Ônfale se divertia revestida da pele do Leão de Neméia, brandindo a pesada clava de seu amante, enquanto este, indumentado com os longos e luxuosos vestidos orientais da rainha, fiava o linho a seus pés…


"Deixa eu dormir porra, fiz vestibular, caralho!"
Mas essa modalidade de exílio, ao menos para os heróis, costuma terminar rapidamente e, por isso mesmo, o amante de Ônfale preparou-se para a partida. Desejando, após a vitória sobre Êurito e o fim do exílio, erguer um altar em agradecimento a seu pai Zeus, mandou um seu servidor, Licas, pedir a Dejanira que lhe enviasse uma túnica que ainda não tivesse sido usada, conforme era de praxe em consagração e sacrifícios solenes. Admoestada pelo indiscreto Licas de que o herói certamente a esqueceria, por estar apaixonado por fole, Dejanira lembrou-se do "filtro amoroso" ensinado e deixado por Nesso, e enviou-lhe a túnica envenenada com o sangue da Hidra de Lerna e com o esperma do Centauro. Ao vesti-la, a peçonha infiltrou-se-lhe no corpo. Alucinado de dor, pegou Licas por um dos pés e o lançou ao mar. Tentou arrancar a túnica, mas esta se achava de tal modo aderente às suas carnes, que estas lhe saíam aos pedaços. Não mais podendo resistir a tão cruciantes sofrimentos, fez-se transportar de barco para Tráquis. Dejanira, ao vê-lo, compreendendo o que havia feito, se matou. O retorno de Héracles assemelha-se, pois, a uma espécie de Odisséia ao contrário. Ulisses, remoçado por Atená, recebe o beijo de sua Penélope, sob os primeiros sorrisos da Aurora de dedos cor-de-rosa; Héracles, com as carnes aos pedaços, contempla, já agonizante, o suicídio de sua Dejanira, sob as maldições silenciosas do monstruoso Centauro Nesso.


Após entregar Íole a Hilo, pedindo que com ela se casasse, tão logo tivesse idade legal, escalou, cambaleando, o monte Eta, perto de Tráquis. No píncaro do monte mandou erguer uma pira e deitou-se sobre ela. Tudo pronto, ordenou que se pusesse fogo na madeira, mas nenhum de seus servidores ousou fazê-lo. Somente Filoctetes, se bem que relutante e a contragosto, acedeu, tendo recebido, por seu gesto de coragem e compaixão, um grande presente do herói agonizante: seu arco e suas flechas. Conta-se que, antes de morrer, Héracles solicitou a Filoctetes, única testemunha de seus derradeiros momentos, que jamais revelasse o local da pira. Interrogado, sempre se manteve firme e fiel ao pedido do herói. Um dia, porém, tendo escalado o monte Eta, sob uma saraivada de perguntas, feriu significativamente a terra com o pé: estava descoberto o segredo. Bem mais tarde (é uma das versões) Filoctetes foi punido com uma ferida incurável no mesmo pé. Tão logo as línguas do fogo começaram a serpear no espaço, fez-se ouvir o ribombar do trovão. Era Zeus que arrebatava o filho para o Olimpo.
Acerca dos momentos derradeiros de Héracles neste vale de lágrimas existe uma variante. O herói não teria morrido torturado pela túnica impregnada do sangue da Hidra e do sêmen de Nesso, mas se teria abrasado ao sol e se teria lançado num regato caudaloso, perto de Tráquis, para extinguir as chamas, morrendo afogado. O ferimento incurável de Filoctetes (devido a outra causa) e a importância do arco e das flechas de Héracles, para a tomada de Tróia, constituem o pano de fundo da tragédia de Sófocles, Filoctetes, encenada em 409 a.C. O ribeiro, em que se precipitara, teve, a partir daí, suas águas sempre quentes. Esta seria a origem das Termópilas (águas termais), entre a Tessália e a Fócida, onde existia e existe até hoje uma fonte de água quente.
A morte de Héracles, em ambas as versões, teve por causa eficiente o fogo: era preciso, simbolicamente, que o herói se purificasse por inteiro, despindo-se dos elementos mortais devidos à sua mãe mortal Alcmena. Também Deméter tentou imortalizar nas chamas a Demofonte e Tétis a Aquiles, expondo-o ao calor de uma lareira, esquecendo-se apenas de que o segurava pelo calcanhar! Admitido entre os Imortais, Hera se reconciliou com o herói: simulou-se, para tanto, um novo nascimento de Héracles, como se ele saísse das entranhas da deusa, sua nova mãe imortal. Sófocles, nas Traquínias, 1105, compreendeu bem essa mensagem, ao escrever que, na hora da morte, o herói dissera que "se chamava assim (Héracles, 'a glória de Hera') por causa da mais perfeita das mães".


Sempre desconfiei.
Seu casamento com Hebe, deusa da juventude eterna, é apenas uma ratificação da imortalidade do novo imortal. Se Hebe, até então, servia aos Imortais o néctar e a ambrosia, penhores da imortalidade, a partir de agora ela se servirá a Héracles como garantia dessa mesma imortalidade. Uma imortalidade conseguida por seus trabalhos, sua timé e sua areté, mas sobretudo por seus sofrimentos: Tõ> náÔEi náBoç (tôi páthei máthos), "sofrer para compreender", escreveu Esquilo na Oréstia (Agam. 177).
"O mais popular de todos os heróis gregos, como atestam a constância e a freqüência de seus aparecimentos na tragédia e particularmente na comédia, foi o único celebrado por todos os Helenos". Seu culto abrangeu uma universalidade tal, que até mesmo uma cidade como Atenas, tão cônscia de suas peculiaridades, não só se vangloriava de haver precedido a todo o mundo grego em prestar honras divinas ao herói (Did. 4,39,1), mas também de lhe haver consagrado mais santuários do que ao herói ateniense Teseu (Eur. Héracles, 1324-1333; Plut. Teseu, 35.2).
Cabe, por conseguinte, a indagação: será Héracles um herói ou um deus? Desde que Sófocles (Traquínias, 811) o disse "o mais destemido dos homens"95, °risto$ ¢ndrùn (áristos andrôn), ou como o apodaram, com ligeiras alterações sinonímicas, Eurípides (Héracles, 183), Aristófanes (Nuvens, 1049 e Hino a Héracles, já citado), a qualidade de herói atribuída a Héracles não sofreu qualquer solução de continuidade. Afinal, não era o herói definido pelos gregos como um ser à parte, ferido de hýbris, excepcional, sobre-humano, consagrado pela morte?
Mas, se entre o homem, o ánthropos, e o herói, o anér, a diferença se mede pela timé e a areté, entre o herói e o deus existe aquele abismo insondável, lembrado por Apolo ao fogoso Diomedes na Ilíada, V, 441-442: haverá sempre duas raças distintas, a dos deuses imortais e a dos homens mortais que marcham sobre a terra. Eis aí, portanto, o grande paradoxo de Héracles: enquanto filho de Zeus e de Alcmena, apesar de tantas gestas gloriosas, teve que escalar o monte Eta para purgar tantos descomedimentos, inerentes "à sua condição de herói" e desvincular-se, nas chamas, do invólucro carnal; enquanto "iniciado", escala apoteoticamente o monte Olimpo e como renascido de Zeus e Hera, torna-se imortal entre os Imortais, no júbilo dos festins (Odisséia, XI, 601-608).


Nesse tempo ele acreditava em Deus...

”Hrw$ θeÒ$ (Héros theós), herói-deus, como diz Píndaro, Neméias, 3,22, Héracles se eternizou nos braços de Hebe, a Juventude eterna.
Tomados em conjunto, os Doze Trabalhos se constituem na escada por que sobe o herói até os píncaros do monte Eta, onde realiza o décimo terceiro, a vitória sobre a morte. Observe-se, aliás, que as três últimas tarefas do herói configuram um namoro com Thánatos. Em Gerião, o grande pastor, "em seus campos brumosos, muito além do ilustre Oceano", está retratado um segundo Hades; seu cão Ortro, de duas cabeças, é irmão de Cérbero, o guardião do reino das sombras, aonde desce Héracles e de onde retorna vitorioso, com o pastor da morte em seus braços; para colher os pomos de ouro, mais uma vez o filho de Alcmena terá que transpor os limites do imenso Oceano (Eurípides, Hipólito, 742sqq.) e penetrar no jardim encantado das Hespérides cantoras (Hesíodo, Teog. 215, 275,517), sedutoras filhas de Nix (Noite) e irmãs das Queres e das Moîras…
Este derradeiro Trabalho, diga-se de passagem, "numa versão mais antiga, como atesta Bonnefoy, era suficiente para abrir a Héracles o caminho do Olimpo. Sem conflitos. Sem sofrimentos. E talvez, sem que lhe fosse necessário morrer a morte de um mortal". Desse modo, tendo arrostado o Além, Héracles venceu a morte e a tradição multiplicou indefinidamente essa vitória, relembrando como o herói feriu ao deus Hades (Il. V, 395sqq.) ou prendeu Thánatos na cadeia de seus braços (Eurípides, Alceste. 846sq.).
Contraversões... 

Vencer a morte é um sonho do ideal heróico, que concentra todo o valor da vida na "esfuziante juventude", a ¢glaÇ Íbh (aglaè hébe); vencer a velha idade, flagelo terrível, que aniquila os nervos e os músculos dos braços e das pernas do guerreiro. Héracles, o Forte, triunfou portanto da velhice, desposando a eterna Juventude.
A época clássica, no entanto, já impregnada de Orfismo, fez que o herói escalasse o Eta, onde se encerra sua carreira mortal sobre uma pira, "como se, para penetrar no Olimpo, o herói tivesse necessidade de conhecer a morte; como se a morte de Héracles negasse nele a mortalidade: morrer, morrer, porém, através do fogo purificador, sobre o monte Eta, onde reina Zeus" (Sófocles, Traquínias, 200,436,1191; Filoctetes, 728sq.).
De qualquer forma, só o aniquilamento do Héracles humano permitiu a apoteose do filho de Zeus; mas ainda não se deu a devida importância à tensão que constantemente reenvia Héracles da morte dos mortais para a morte que imortaliza.97
Na Introdução ao Mito dos Heróis, já se fez menção de um fato curioso: muitos e grandes heróis, que tantas vezes contemplaram a morte de perto e de frente, e a desafiaram, pereceram de maneira pouco mais que infantil. Parece que, em dado momento, quando Láquesis sorteia o fio da vida, o herói, por mais astuto que seja, perde o itinerário da luz, como Agamêmnon, Aquiles, Ulisses, Teseu... Héracles, o Forte, não escapou a essa armadilha da Moîra. Sófocles pôs majestosamente em cena a queda, o desabamento do "mais nobre de todos os homens" convertido num objeto de pena e de ignomínia. O maior exterminador de monstros e de Gigantes (Píndaro, Neméia, 7,90; Sófocles, Traquínias, 1058sq.; Eurípides, Héracles, 177sqq.) transforma-se num monstro urrante, vítima da crueldade e traição que ele tantas vezes combateu e venceu.
Fica patente no mito de Héracles que a força física é ambivalente, na medida em que ela se apóia apenas na hýbris, no excesso na "démesure". Assim o herói oscila entre o ánthropos e o anér, entre o homem ou sub-homem, e o herói, o super-homem, sacudido constantemente, de um lado para outro, por uma força que o ultrapassa, sem jamais conhecer o métron, a medida humana de um Ulisses, que soube escapar a todas as emboscadas do excesso. Talvez se pudesse ver nesses dois comportamentos antagônicos a polaridade Ares-Atená, em que a força bruta do primeiro é ultrapassada ou "compensada" pela inteligência astuta da segunda.
Desse modo, antes de ser arrebatado para junto dos Imortais, o filho de Alcmena conheceu, mais e melhor que todos os mortais, a humilhação e o aviltamento. Vistos do Olimpo ou do Hades, seus Trabalhos são tidos por gestas ignominiosas e destino miserável (Il. XIX, 133; Od. XI, 618sq.): o flagelo dos monstros conheceu a escravidão às ordens de Euristeu ou de Ônfale; por duas vezes Ánoia ou Lýssa dele se apossaram, levando-o a matar os próprios filhos e essa demência não o abandonou a não ser para reduzi-lo à fragilidade de uma criança ou de uma mulher (Eurípides, Héracles, 1424).

O grande momento de sua queda, todavia, se inscreve no episódio do ato final em que Dejanira se transmuta em homem e Héracles em mulher.98 Na tragédia de Sófocles Dejanira se apunhala, como um herói, como Ájax, em vez de se enforcar, morte tipicamente feminina, segundo a tradição (Sófocles, Traquínias, 930sq.), enquanto o herói grita e chora como uma mulher, ele, o Forte, o másculo, que, no infortúnio, se revela uma simples mulher (Sófocles, Traquínias, 1071-1075). E é uma mulher com um físico de mulher, sem nenhum traço de um macho, que o destrói, sem mesmo dispor de um punhal (Sófocles, Traquínias, 1062sq.). Como ATjiórmea (Deiáneira), etimologicamente, talvez provenha do v. dhïoàn (deïûn), "matar, destruir" e ¢nÇr (anér), "homem, marido", significa "a que mata o marido", viu-se em Héracles o símbolo de uma vigorosa denegação da fraqueza face à hostilidade materna de Hera, figurando Dejanira como a mãe perversa..99
Para encerrar esta parte do capítulo, um derradeiro paradoxo do mais jovem imortal do Olimpo. É deveras impressionante a multiplicidade de facetas que o herói assumiu no lógos filosófico e a propensão de sábios e intelectuais, desde os Órficos e Pitagóricos, passando pelos Sofistas, em anexar-lhe a figura como modelo exemplar, como exemplar uirtutis. "Desse modo, a força bruta passou a ser um terreno inexplorado para o desenvolvimento desse exemplar uirtutis e já que o herói escravizado e humilhado pelos prepotentes se tornou um deus, os moralistas viram no seu destino um símbolo da própria condição humana: a encarnação mesma da eficácia do sofrimento". "Sofrer para compreender", já adiantara o religiosíssimo Ésquilo. Um herói, voltado eminentemente para a fÚsi$ (phýsis), para a "natureza", de repente passa a ser dotado de extraordinária capacidade deliberativa, capaz mesmo de "escolher os Trabalhos" e os sofrimentos como norma de vida, tornando-se um campeão do nÒmo$ (nómos), da lei e dos costumes. 100 E o herói se desdobrou, como se fora executar um décimo quarto Trabalho, que seria a busca da ¢retÇ (areté), da "virtude estóica".
Antes que os Sofistas se apoderassem desse novo Héracles, todo reflexão, sentado meditativamente em locais solitários ou nas encruzilhadas, o amante da música, o herói da ação energética da força moral, o justo fatigado e sofredor, a hagiografia órfico-pitagórica já transformara o mito em paradigma significativamente edificante. Coube, todavia, ao sofista Pródico, século V a.C, autor de um apólogo denominado na tradição latina Hercules in biuio, "Héracles na encruzilhada", mostrar um herói novo, que, com uma constância invencível, sobrepujou todos os obstáculos, para tornar-se digno de uma glória imperecível. Pois bem, foi desse apólogo que se aproveitou Xenofonte para nos dar em seus 'Awjjwiiiwvs&ittH» (Apomnemoneúmata), que o escritor latino Aulo Gélio traduziu por Commentarii, "Memórias", "Memoráveis", como querem outros, um retrato de corpo inteiro do novo Héracles, inteiramente retocado pelo pincel órfico-pitagórico. A alegoria se encontra no livro segundo, capítulo 1, 21-33 dos Memoráveis, quando do diálogo sobre a temperança entre Sócrates e Aristipo.
Sentado num local solitário, Héracles adolescente pesa as vantagens e os inconvenientes, respectivamente, do caminho da "virtude", ¢retÇ (areté) e daquele do "vício", kaki/a (kakía). Dele se aproximam duas mulheres, que, pela estatura e porte, são hipóstases de duas deusas, cujos nomes são Areté e Kakía. Como no Discurso justo e o Discurso Injusto das Nuvens, 889-1114, de Aristófanes, comédia por nós traduzida, cada uma defende sua causa diante do jovem em busca de uma diretriz para sua vida, que está começando. Kakía, ricamente indumentada e com olhares gulosos, fala contra todo e qualquer esforço e contenção, e faz uma bela apologia do ócio e do prazer; Areté, vestida de branco, de olhar modesto e pudico, disserta com absoluta precisão acerca da felicidade e do bem, mas estes só se alcançam, diz ela, através do trabalho e da fadiga, com o sacrifício e a submissão do corpo à inteligência.
É bem verdade que o prólogo se encerra com a luminosa peroração de Areté, mas o público de Pródico, ou melhor, o público ateniense sabia perfeitamente que o jovem Héracles, em nome da EúStwjiovía (Eudaimonía), da Felicidade, elegera o caminho estreito dos Doze Trabalhos.
Não há dúvida, acentua Bonnefoy, de que este apólogo evidencia temas estranhos àquilo que se constituiu até o século V a.C no núcleo do mitologema de Héracles. Na referência à escolha dos dois caminhos tem-se reconhecido uma alusão a Hesíodo que, nos Trabalhos e Dias, 287-292, já opõe a via do kakÒth$ (kakótes), do vício, da miséria à da ¢retÇ (areté), do mérito e do trabalho; a alegoria, igualmente, parece ecoar, no concurso de eloqüência entre Areté e Kakía, uma versão sofistica do julgamento de Páris ou Alexandre, para outorga do Pomo da Discórdia: apenas um julgamento sem Hera, um julgamento ao contrário, em que o herói prefere Areté-Atená a Afrodite-Kakía. Um dilema evidentemente desconhecido pelo Héracles do mito, cuja virilidade e descomedimento se ajustam perfeitamente ao auxílio meio à distância de Atená e à presença integral dos prazeres de Afrodite! Por fim, a opção de Héracles está certamente relacionada com a escolha de Aquiles, morrer jovem, mas gloriosamente, ou morrer idoso, como qualquer mortal, tema favorito das escolas atenienses do século V a.C, em que a Areté e Kakía se dava o sentido tradicional de "bravura" e "covardia".101
Uma coisa, todavia, é definitiva: como núcleo do apólogo, bem distante dos Órfico-Pitagóricos e dos Sofistas, baloiçando, como convinha a um herói de seu porte, entre dois pólos antagônicos, o herói fez sua escolha e preferiu o que o mito lhe oferecia, uma vida de trabalhos e de dores, mas também de prazeres e desregramentos, quando os Trabalhos o permitiam... Reinterpretando, porém, à maneira órfico-pitagórica, as façanhas do herói numa perspectiva moralizante, que superlativava o esforço, Pródico construiu um Héracles edificante, fazendo esquecer as representações amorais do herói.


No fecho desse longo percurso, triturado pela máquina moralizante órfico-pitagórico-prodiciana, eis um novo Héracles: casto, sábio, modelo de virtude!
Héracles, realmente, se tornara por fim o que ele sempre foi, desde o Hino Homérico aos Estóicos, um a”risto$ ¢ndrùn (áristos andrôn), "o melhor dos homens". É que, e aqui está a diferença, a expressão áristos andrôn, "o maior, o melhor dos heróis", adquiriu, no decorrer dos séculos, a conotação de "o melhor dos homens". Também ¢retÇ (areté), que é da mesma família etimológica que a”risto$ (áristos), e que designava originariamente "o valor guerreiro" se enriqueceu paulatinamente com uma carga de interioridade, até tornar-se algo semelhante a que se poderia chamar "virtude".

A história do destino de Héracles acabou por contrair núpcias indissolúveis com a areté, adquirindo o herói um perfil de urbanidade e civilidade que Homero e Hesíodo estavam longe de imaginar…



Visto tudo isso, eu de modo capivara, gostaria de traçar algumas palavras sobre tudo isso. Primeiramente, ler tudo isso foi uma experiência transcendental para mim por ter implicado outras leituras interessantes, como diria Einstein "uma mente que se abre a uma nova ideia, jamais volta ao seu tamanho original". Longe de ser apenas uma historinha para entreter, Hércules remete a etimologia de muitas coisas que não imaginávamos no dia a dia, desde a um mata-leão, golpe de jiu-jitsu que quase todo moleque executou em alguma briga na vida, á mesmo as Olimpíadas, ou mesmo a figura do macho alpha invencível. Não cabe a mim, dizer se isso existiu ou se tudo são alegorias de um povo que queria explicar desde a chuva á existência de um vulcão por exemplo. Isso é uma escolha sua. A relevância de tudo isso é a forma como esses enredos serviram de alicerces para quase todas as histórias que lemos e iremos ler na vida.
Longe de termos como herói ou vilão, Hércules era uma força imparável e descomunal, o puro instinto do macho antigo sem maiores raciocínios antes de utilizar sua força. É a figura da humanidade primata potencializada, servindo como referencial para guerreiros humanos vulneráveis ou deuses intocáveis. Em tempos de modelos masculinos frágeis, femininos, metrossexuais, Hércules é o tipo de arquétipo que precisa voltar a ser difundido cada vez mais.



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Até o próximo.



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