A Morte da Família Humana – Impressões sobre o Primeiro Luto na Batfamília

 Wagner Williams Ávlis*

[Esta crítica é um preparatório para meu ensaio de literatura comparada a se chamar "Famílias em Morte", um comparativo analítico entre as obras Morte em Família (1988), de Jim Starlin com Jim Aparo, e A Morte da Família (2012), de Scott Snyder com Greg Capullo].      

    Faz tempo que li o arco Morte em Família (uma vez em 1998, outra em 1999), a trama que fez Jason Todd, o segundo Robin, ser monstruosamente assassinado. Tenho-o em duas republicações, na DC Especial #1 (ed. Abril, 1989), pelas comemorações dos 50 anos de Batman, e na Clássicos DC Comics #01 (ed. Panini, 2009), essa daqui um primor para colecionador, motivo de eu dispensar a da Eaglemoss. Para início de conversa, alguns dados têm de ser postos em evidência:

⊸ a ligação com Harvey Dent (Duas-Caras);

⊸ arrependimento de Bruce Wayne em fazer de Jason Todd um Robin;

⊸ a investigação pelas 3 mulheres de iniciais /s/.

⊸ a presença do aiatolá iraniano Khomeini.

Descobri uma grosseira distância entre a tradução do formatinho Abril e a do encadernado Panini. Vejamos um exemplo na cena em que Batman, encolerizado pela notícia da ONU, soca o rosto de Superman. Na sequência, Superman é o primeiro a falar.

Ed. Abril (pp.105-106)

– Eu vim conversar racionalmente com você...

– Quem é o embaixador?

– Por que não vai pra casa?

– Quem?

– Batman...

– Quem??!

– Quem??!

– Se sente melhor agora?

– [...] Acho que quebrei meus dedos...

– Não quebrou, mas estão seriamente contundidos. Ainda bem que movi o rosto. Você poderia ter se aleijado.

Ed. Panini (pp.120-121)

– Vim aqui pregar bom senso. Mas se isso não funcionar...

– Quem é o tal embaixador?

– Se você voltasse pra casa...

– Quem é?

– Não há nada que possa fazer aqui.

– Quem??!

– Quem??!

– Agora se sente melhor?

– [...] Acho que quebrei uns metacarpos...

– Foi apenas uma contusão feia. Sua sorte foi eu me virar junto com o soco, senão poderia ter perdido a mão.
Cena do conflito entre os superamigos, a cena da tradução comparada.
          Morte em Família não chega a ser uma obra-prima, sustento até que não chega a ser um clássico, apesar de considerada por muitos, mas isso é academicismo meu; em parte, ela pode sim ser considerada um clássico, pois possui as características necessárias. Em Literatura, “clássico” é um trabalho indispensável ao conjunto de obras (do personagem ou do autor) sem o qual a historiografia daquilo ficaria incompleta, de sorte que aquela obra clássica tem a classe de servir-se de todo e qualquer tempo, lugar, gerações, sem estar limitada às condições da época. O não-clássico ou o convencional é o oposto disso, está preso às condições da época, seus conceitos chegam ao obsoleto e pouco ou nada repercute no conjunto da obra. Notemos que a morte de Robin oscila entre as duas categorias. É certo que A. Moore conseguiu arrebatar o público com Piada Mortal, uma tragédia do gênero (no caso, com Batgirl), porém bem mais impactante, com apenas 46 páginas, enquanto J. Starlin, aqui, precisou de 133 páginas distribuídas em 6 capítulos para se aproximar do efeito de A. Moore. Não fosse o fato histórico da morte do 2º Robin no cânon do herói, essa história poderia ser posta às genéricas do detetive, como As 10 Noites da Besta, com pegada parecida. Já a de Moore é absolutamente peculiar. 

        Jim Starlin foi redescoberto por mim como um autor de "espacialidade dinâmica" (no jargão literário). Espacialidade dinâmica é quando o autor articula vários cenários sobrepostos em camadas hierárquicas, cada cenário funcionando em subtramas, convergindo para um só, desembocando na trama principal. Um exemplo são os roteiros com James Bond 007, um verdadeiro tour pelo mundo. Passando pela urbanidade, pelo espaço sideral, pelos lugares divinais em Adam Warlock, explorando de cima abaixo – do asfalto aos esgotos – de Gotham City em O Messias (1988), da Terra à Nova Gênese em Odisseia Cósmica (1991), Starlin sempre ampliou aquele espaço fixo da trama para espaços móveis da trama com a espacialidade dinâmica. E em Morte em Família não é diferente. Todo o arco já antecipa ao leitor que a rede de intrigas naquele enredo será de natureza internacional, não local, a começar pela quadrilha de pornografia infantil e pelo míssil nuclear roubado do exército (cap.I), uma forma, deveras, de representar a preocupação do país com aqueles tipos de contrabando por meio de referências explícitas aos problemas envolvendo terrorismo vindo do Irã e às políticas econômicas implantadas pelo presidente Ronald Reagan. Atentemos ao diálogo do arlequim que antecipa aquela natureza internacional (e a tal espacialidade dinâmica):

– Eu vinha passando mais tempo dentro do Arkham do que fora. Aí comecei a pensar seriamente em mudar de área... Por exemplo, política internacional! (p.19).
De Gotham City para o Líbano, Magdala, Golfo Pérsico, Teerã, na República Islâmica do Irã, finalizando em Nova York, na sede da ONU, Jim Starlin dá um show de geopolítica e globalização numa das primeiras tramas globalizatórias de super-herói, recurso chamado em Literatura de "espacialidade dinâmica", a sobreposição de vários cenários distribuídos hierarquicamente para convergir em um só.
Isso posto, posso então argumentar.

Não é óbvio Batman e Robin efetuando investigações paralelas no exterior sem que um saiba do outro Isso porque o ponto-chave central é o pai de Jason Todd, ex-capanga do Duas-Caras, conforme o retcon do próprio arco. Figura com alguma articulação na máfia, o sr. Willis Todd esteve envolvido numa ampla rede do submundo. A lista póstuma dele – achada por Robin – tinha 3 contatos femininos internacionais com iniciais /s/, as prováveis mães do Robin-II Jason Todd, todas, em certo grau, envolvidas com a rede do Coringa, com uma delas sendo a Lady Shiva, o mesmo Coringa que, vez outra, é habituado a aliançar-se com Duas-Caras, ex-patrão do sr. Willis Todd, pai do Robin. As 3 contatos e prováveis mães do Robin estão no Oriente Médio, e para lá ele ruma. Por sua vez, Batman está no encalço de duas coisas: a fuga do Coringa e o desaparecimento do míssil, que, pra ele estão ligadas, principalmente quando descobre dum capanga do Coringa, um tal Gaspar Taylor, um visto para o Líbano; mais uma vez o espaço do Oriente Médio. Logo, a dupla-dinâmica, individualmente, se dirige para lá, com paradeiros desconhecidos e objetivos diferentes. Resta explicar agora o que liga, nessa convergência, as 3 prováveis mães do Robin, o míssil e o Coringa ao Oriente Médio.

Não é simplista que as três possíveis mães de Jason trabalhem com assuntos ligados ao Coringa ⟶ Sharmim Rosen, Shiva Woosan, Sheila Haywood, são todas criminosas, comparsas do pai de Jason, sr. Willis Todd, interceptadoras para qualquer chefe do crime que melhor pagarem-nas. Subentende-se que, se Willis Todd trabalhava para Duas-Caras, e as mulheres Sharmim Rosen, Shiva Woosan, Sheila Haywood eram suas comparsas, então os 4 também já fizeram serviços para o Coringa, um dos achegados ao Duas-Caras. O que prova isso é que Coringa, de outros e passados “carnavais”, sabe dos “podres” de Sharmim Rosen e Sheila Haywood, e com eles as chantageia. A rede de intrigas até aí, a meu ver, está bem tecida, amarrada, fluida.

Enfim, o que liga as 3 prováveis mães do Robin, o míssil e o Coringa ao Oriente Médio ⟶ Todo esse lance de “coincidências” – que na verdade não são coincidências, mas motivações bem elaboradas – aflui e revela a grande mão invisível por trás da espacialidade dinâmica, que, ressalte-se, não é a do Coringa; ele é apenas a ponta-de-lança do plano. O leviatã a que tudo converge é o governo do Irã com seus xiitas terroristas interessados em espalhar o terror no Ocidente, usando um ocidental, o Coringa, como um escambo: o arlequim fornece o míssil e o gás hilariante, em troca recebe o cargo de embaixador do Irã na ONU; assim, os xiitas podem usar o bobo da corte como bode expiatório, caso algo desse errado, e o bobo da corte pode usar o cargo para ampliar seu campo de influência e insanidade.

          Alguns informes importantes de Morte em Família:

● Toda a narrativa parte da perspectiva de Batman sobre o caso, e portanto passível de lacunas, subjetividade, reinterpretação, equívocos. Ele é o narrador-personagem do enredo.

● É uma das histórias que expõem a falibilidade do melhor detetive do mundo e sua segunda grande tragédia pessoal. A partir daí ele não rirá mais nas HQs.

● O arco é uma continuidade direta de Piada Mortal (1988), àquela altura considerada canônica na cronologia do batverso. Starlin não só quis comover com Robin, mas também fortalecer a figura odienta do Coringa, imputando a ele dois graves atentados contra o Homem-Morcego: a paralisia da Batgirl e a morte do segundo Robin. Observemos o que o capanga do Coringa, Rupert, diz ao seu amo (cap. I, p.18):

– É que ficaram fulos com o que você fez com a filha do Gordon. [...] Mas você a aleijou!

Pouca gente se atenta ao fato de que a história da morte do Robin é uma continuidade dos eventos de Piada Mortal, tudo para tornar o Coringa o inimigo mais odiável do Batman, por ele e pelos leitores.
● O cap. V é uma grande alusão intertextual a O Cavaleiro das Trevas-I, 1) no episódio do conflito entre Superman e Batman; temendo qualquer surto de Batman em função do cargo do Coringa como embaixador do Irã na ONU, o departamento de Estado encarrega Superman de monitorá-lo e/ou contê-lo. Segue um início de luta, logo apaziguada. 2) No episódio do diálogo definitivo entre Batman e Coringa; na sessão da ONU, Bruce Wayne, enquanto observa Coringa subir à tribuna, divaga:

– “Todos sabem que ele é a morte personificada. Perdi a conta de quantos ele assassinou nesses anos. Mas é hoje que tudo acaba. Chega de matança. Chega do Coringa. [...] Eu e ele temos um vínculo faz tanto tempo que ambos não entendemos a verdadeira natureza da ligação” (cap.VI, p. 135). 

● Primeira história em quadrinho a promover um vilão a um cargo público de influência internacional.

● A última página da história é quase uma repetição do desfecho do conto O Coringa Encontra a Mulher-Gato (Batman #02, 1940), ocasião onde, entre o batplano e uma torre de castelo em chamas, Coringa é golpeado por Batman, ficando desacordado ao chão em meio às chamas, e Mulher-Gato some nas águas do mar. A ideia ali é a mesma daqui: mostrar o Coringa como uma entidade do mal, capaz de driblar a morte, sumir em situações adversas e retornar intacto. Aliás, foi observando esses intrigantes sumiços e retornos da morte do personagem que, durante a fase Novos 52, o autor Scott Snyder estabeleceu que Coringa é um ser imortal.

● Um conto que prezou pela globalização geopolítica, em curso a seu tempo, fazendo jus aos postulados da Era Moderna dos Quadrinhos, 

a) denunciando as condições de miserabilidade em países de governo islâmico fundamentalista; 

b) conto que desfocou-se de Gotham City para transferir-se pro Irã, a fim de mostrar um dos tentáculos da Guerra Irã-Iraque (1980-1988), então em vigor; 

c) a ameaça crescente do terrorismo oriental no Ocidente depois da Guerra do Yom Kippur pelo Canal de Suez (1973) e 

d) as possíveis ameaças da chamada Liga Árabe (organização com 22 países-membros), naquele tempo, disposta a boicotar e fazer coalizão contra Israel em favor dos palestinos (na HQ, representada pela corrupta espiã Sharmim Rosen, a primeira possível mãe do Robin).

● Jim Starlin quis mostrar, com toda essa globalização, que a “morte em família” não era só a do Robin na batfamília, mas a morte entre a família humana dos cidadãos do mundo, o Oriente contra o Ocidente, num plano geral, a morte na família de Jason Todd em todo o seu histórico de corrupção e assassínios  num plano restrito. Sendo assim, o arco está mais para “morte nas famílias”.
O líder xiita iraniano, o aiatolá Ali Khomeini (presidente do Irã de 1981 a 1989), se revela como a grande mão invisível por trás dos planos de dominação na trama. O Coringa e sua quadrilha não passam de peças de xadrez no jogo totalitário do terrorismo do Irã contra a América.
       Por isso tudo, não considero Morte em Família um roteiro simplista, caça-níquel ou clichê da Era de Prata; no meu olhar, ele está muito acima. Agora, de minha parte, se eu fosse o roteirista, pra ficar bem mais amarrada a trama, teria posto como antagonista o Duas-Caras, o elo direto com a família Todd, e não o Coringa. Mas entendo por que Starlin quis o arlequim; como disse acima, era para potencializar toda carga vilanesca que ele trouxe de Piada Mortal.
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(*) Professor de Língua Portuguesa, Literatura Brasileira, Redação, escritor da Academia Maceioense de Letras, articulista de imprensa. Nas horas vagas, é historiador do Homem-Morcego. 

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