HÉRCULES -- PARTE 01



Vou começar aqui e agora uma série de transcrições, não de qualquer bobagem, mas de um mito, magistralmente contado pelo historiador Junito Brandão. Ele escreveu o que eu acho de “trilogia suprema da Mitologia Grega”, e seus livros, além de pouco conhecidos pela maioria, são bastante caros, cerca de 100 reais cada. Resolvi transcrever aqui nesse primeiro post, a introdução que ele faz de Hércules, cujo nome correto é Alcides, seu nome só seria esse de fato após a conclusão dos trabalhos. Seria ofensivo e presunçoso se eu simplesmente ler isso e tenta-se contar com as minhas palavras, seria até mesmo um demérito, visto que o Sr. Junito fez uma pesquisa de uma vida para escrever esses três livros, portanto em respeito a esse grande homem, vou compartilhar isso para que mais pessoas possam ler. Vou dividir em umas quatro partes (formatadas para uma melhor compreensão e leitura), são cerca de quarentas e poucas páginas, resumindo ao máximo as várias versões, desse que é considerado o mais bravo e forte dos semi-deuses.

Héracles e os Doze Trabalhos 1 HÉRACLES, em grego `HraklÍ$ (Heraklês), é interpretado em etimologia popular como palavra composta de ”Hra (Héra), "Hera" e kle/o$ (kléos), "glória", ou seja, o que fez a glória de Hera, saindo-se vitoriosamente nos doze trabalhos gigantescos que a deusa lhe impôs. Pergunta, entretanto, Carnoy, se a etimologia citada não resultaria de uma confusão entre o nome da deusa, que o perseguia, e o nome fo« (êra), sem aspiração, e que significa serviço, uma vez que o herói realmente pode ser chamado "aquele que gloriosamente serviu por suas gestas célebres". Quanto ao nome latino do deus, Hércules, este provém do grego Heraklês, possivelmente com um intermediário etrusco hercle. Seja como for, trata-se de mais um nome mítico sem uma etimologia satisfatória. Muito embora seja Zeus, no mito, e não Anfitrião, o pai de Héracles, este vem a ser bisneto de Perseu pelo lado materno, pois Alcmena, sua mãe, é filha de Eléctrion e neta de Perseu. O quadro a seguir torna mais clara a genealogia do maior dos heróis gregos.

Perseu querendo a cabeça de quem fez o remake de Fúria de Titãs...

Já tendo sido mencionados todos os filhos de Perseu e Andrômeda no fim do capítulo anterior, vamos nos preocupar apenas com Alceu e Eléctrion. Enquanto neto de Alceu, o filho de Alcmena é chamado igualmente 'AtoceíSrjç (Alkéides), Alcides, nome proveniente de * M (alké), "força em ação, vigor". Em tese, até a realização completa dos Doze Trabalhos, o herói deveria ser chamado tão-somente de Alcides, pois só se torna a "glória de Hera", Héracles, após o término de todas as provas iniciáticas impostas pela deusa. É assim, aliás, que lhe chama Píndaro, Olímpicas, 6,68: "o rebento ilustre da raça de Alceu". É extremamente difícil tentar expor, já não diria em ordem racional, mas até mesmo com certa ordem, o vasto mitologema de Héracles, uma vez que os mitos, que lhe compõem a figura, evoluíram ininterruptamente, desde a época pré-helênica até o fim da antiguidade greco-latina. Variantes, adições e interpolações várias de épocas diversas, algumas até mesmo de cunho político, enriqueceram de tal modo o mitologema, que é totalmente impraticável separar-lhe os mitemas. O único método válido, a nosso ver, para que se tenha uma visão de conjunto desse extenso conglomerado, é dividir a estória de Héracles em ciclos, fazendo-os preceder dos mitos concernentes a seu nascimento, infância e educação. Vamos, assim, tentar estabelecer uma divisão mais ou menos didática nesse longo mitologema, a fim de que se possa ter uma idéia das partes e, quanto possível, do todo.


Nosso esquema "artificial" funcionará, pois, da seguinte maneira:

1 — nascimento, infância e educação de Héracles;

2 — o ciclo dos Doze Trabalhos;

3 — aventuras secundárias, praticadas no curso dos Doze Trabalhos;

4 — gestas independentes do ciclo anterior; e 5 — ciclo da morte e da apoteose do herói.


O Hino homérico a Héracles, 1-8, em apenas oito versos, nos traça o destino completo do herói incomparável:

É a Héracles, filho de Zeus, que vou cantar,
ele que ê de longe o maior dentre os que habitam a terra.
Aquele a quem Alcmena, na Tebas de belos coros, deu a luz,
após unir-se ao Crônida de sombrias nuvens.
Errou e sofreu, primeiro, sobre a terra e no mar imensos; em seguida triunfou, graças à sua bravura,
e, sozinho, executou tarefas audaciosas e inimitáveis. Agora, habita feliz a bela mansão do Olimpo nevoso
e tem por esposa a Hebe de lindos tornozelos.


Anfitrião, filho de Alceu, casara-se com sua prima Alcmena, I ilha de Eléctrion, rei de Micenas, mas tendo involuntariamente causado a morte de seu sogro e tio, foi banido por seu tio Estênelo, rei suserano de Argos, e de quem dependia o reino de Micenas. Expulso, pois, de Micenas, Anfitrião, em companhia da esposa, refugiou-se em Tebas, onde foi purificado pelo rei Creonte. Como Alcmena se recusasse a consumar o matrimônio, enquanto o marido não lhe vingasse os irmãos, mortos pelos filhos de Ptérela77, Anfitrião, obtida a aliança dos Tebanos e com contingentes provindos de várias regiões da Grécia, invadiu a ilha de Tafos, onde reinava.

Ptérela era um dos muitos descendentes de Perseu. Durante o reinado de Eléctrion em Micenas, os filhos de Ptérela foram reclamar aquele reino, ao qual diziam ter direito, uma vez qui ali reinara um seu bisavô, Mestor, irmão de Eléctrion. Este repeliu indignado as pretensões dos príncipes, que, como vingança, lhe roubaram os rebanhos. Desafiados pelos filhos de Eléctrion para um combate, houve grande morticínio, tendo escapado apenas dois contendores, um de cada família. Foi, por amor de Alcmena, que Anfitrião empreendeu a guerra contra Tafos. Havia, no entanto, um oráculo segundo o qual, em vida do rei Ptérela, a ilha jamais poderia ser tomada, É que a vida do rei estava ligada a um fio de cabelo de ouro que Posídon implantara na cabeça do mesmo. Aconteceu, no entanto, que Cometo, filha de Ptérela, se apaixonara por Anfitrião e, enquanto o pai dormia, arrancou o fio de cabelo mágico, provocando-lhe assim a morte e a ruína de Tafos.

O modo como mostram o Hades em GOW 3 é de uma fidelidade quase impecável.

Ptérela. Com a traição de Cometo, a vitória de Anfitrião foi esmagadora. Carregado de despojos, o filho de Alceu se aprestou para regressar a Tebas, com o objetivo de fazer Alcmena sua mulher. Pois bem, foi durante a ausência de Anfitrião que Zeus, desejando dar ao mundo um herói como jamais houvera outro e que libertasse os homens de tantos monstros, escolheu a mais bela das habitantes de Tebas para ser mãe de criatura tão privilegiada. Sabedor, porém, da fidelidade absoluta da princesa micênica, travestiu-se de Anfitrião, trazendo-lhe inclusive de presente a taça de ouro por onde bebia o rei Ptérela e, para que nenhuma desconfiança pudesse ainda, porventura, existir no espírito da "esposa", narrou-lhe longamente os incidentes da campanha. Foram três noites de um amor ardente, porque, durante três dias, Apolo por ordem do pai dos deuses e dos homens, deixou de percorrer o céu com seu carro de chamas. Ao regressar, logo após a partida de Zeus, Anfitrião ficou muito surpreso com a acolhida tranquila e serena da esposa e ela também muito se admirou de que o marido houvesse esquecido tão depressa a grande batalha de amor travada até a noite anterior em Tebas… Um duelo que fora mais longo que a batalha na ilha de Tafos! Mais espantado e, dessa feita, confuso e nervoso ficou o general tebano, quando, ao narrar-lhe os episódios da luta contra Ptérela, verificou que a esposa os conhecia tão bem ou melhor que ele. Consultado, o adivinho Tirésias revelou a ambos o glorioso adultério físico de Alcmena e o astucioso estratagema de Zeus. Afinal, a primeira noite de núpcias compete ao deus e é, por isso, que o primogênito nunca pertence aos pais, mas a seu Godfather…  Mas Anfitrião, que esperara tanto tempo por sua lua de mel, se esquecera de tudo isto e, louco de raiva e ciúmes, resolveu castigar Alcmena, queimando-a viva numa pira. Zeus, todavia, não o permitiu e fez descer do céu uma chuva repentina e abundante, que, de imediato, extinguiu as chamas da fogueira de Anfitrião. Diante de tão grande prodígio, o general desistiu de seu intento e acendeu outra fogueira, mas de amor, numa longa noite de ternura com a esposa. Com tantas noites de amor, Alcmena concebeu dois filhos: um de Zeus, Héracles; outro de Anfitrião, Íficles.

Acontece que Zeus, imprudentemente, deixara escapar que seu filho nascituro da linhagem dos persidas reinaria em Argos. De imediato, a ira e o ciúme de Hera, que jamais deixou em paz as amantes e os filhos adulterinos de seu esposo Zeus, começaram a manifestar-se. Ordenou a Ilítia, deusa dos partos, (sobre quem já se falou no Vol. II, p. 58) e que, diga-se mais uma vez, é uma hipóstase da própria rainha dos deuses, que retardasse o mais possível o nascimento de Héracles e apressasse o de Euristeu, primo de Alcides, porquanto era filho de Estênelo. Nascendo primeiro, o primo do filho de Alcmena seria automaticamente o herdeiro de Micenas. Foi assim que Euristeu veio ao mundo com sete meses e Héracles com dez! Este acontecimento é narrado minuciosamente na Ilíada, XIX, 97-134. Fazia-se necessário, todavia, iniciar urgentemente a imortalidade do herói. Zeus arquitetou um estratagema, cuja execução, como sempre, ficou aos cuidados de Hermes: era preciso fazer o herói sugar, mesmo que fosse por instantes, o seio divino de Hera. O famoso Trismegisto conseguiu mais uma vez realizar uma façanha impossível: quando a deusa adormeceu, Hermes colocou o menino sobre os seios divinos da imortal esposa de Zeus. Hera despertou sobressaltada e repeliu a Héracles com um gesto tão brusco, que o leite divino espirrou no céu e formou a Via Láctea!

Esse foi o primeiro chocalho de Alcides.
Existe uma variante que narra o episódio de maneira diversa. Temerosa da "ira sempre lembrada da cruel Juno", como diria muito mais tarde Vergílio, Eneida, 1,4, com respeito ao ressentimento da deusa contra Enéias, Alcmena mandou expor o menino nos arredores de Argos, num local que, depois, se chamou "Planície de Héracles". Por ali passavam Hera e Atená e a deusa da inteligência, vendo o exposto, admirou-lhe a beleza e o vigor. Pegou a criança e entregou-a a Hera, solicitando-lhe desse o seio ao faminto. Héracles sugou o leite divino com tanta força, que feriu a deusa. Esta o lançou com violência para longe de si. Atená o recolheu e levou de volta a Alcmena, garantindo-lhe que podia criar o filho sem temor algum. De qualquer forma, o vírus da imortalidade se inoculara no filho de Zeus e Alcmena. Mas o ódio de Hera sempre teve pernas compridas. Quando o herói contava apenas oito meses, a deusa enviou contra ele duas gigantescas serpentes. Íficles, apavorado, começou a gritar, mas Héracles, tranqüilamente, se levantou do berço em que dormia, agarrou as duas víboras, uma em cada mão, e as matou por estrangulamento. Píndaro, nas Neméias, 1,33-63, disserta poética e longamente sobre a primeira grande gesta de Héracles. Anfitrião, que acorrera de espada em punho, ao ver o prodígio, acreditou, finalmente, na origem divina do "filho". E o velho Tirésias, mais uma vez, explicou o destino, que aguardava o herói. A educação de Héracles, projeção da que recebiam jovens gregos da época clássica, começou em casa. Seu primeiro grande mestre foi o general Anfitrião, que o adestrou na difícil arte de conduzir bigas. Lino foi seu primeiro professor de música e de letras, mas enquanto seu irmão e condiscípulo Íficles se comportava com atenção e docilidade, o herói já desde muito cedo dava mostra de sua indisciplina e descontrole.

Num dia, chamado à atenção pelo grande músico, Héracles, num assomo de raiva, pegou um tamborete, outros dizem que uma lira, e deu-lhe uma pancada tão violenta, que o mestre foi acordar no Hades. Acusado de homicídio, o jovem defendeu-se, citando um conceito do implacável juiz dos mortos, Radamanto, segundo o qual tinha-se o direito de matar o adversário, em caso de legítima defesa. Apesar da quando muito legítima defesa cerebrinamente putativa, Héracles foi absolvido. Em seguida, vieram outros preceptores: Eumolpo prosseguiu com o ensino da música; Êurito, rei de Ecália, que bem mais tarde terá um problema muito sério com o herói, ensinou-lhe o manejo do arco, arte em que teve igualmente por instrutor ao cita Têntaro e, por fim, Castor o exercitou no uso das demais armas. Héracles, porém, sempre se portou como um indisciplinado e temperamental incorrigível, a ponto de, temendo pela vida dos mestres, Anfitrião o mandou para o campo, com a missão de cuidar do rebanho. Enquanto isso, o herói crescia desproporcionadamente. Aos dezoito anos, sua altura chegava a três metros! (Nota minha: Fiel a esse fato até hoje só vi o terceiro jogo de God of War)  E foi exatamente aos dezoitos anos que Héracles realizou sua primeira grande façanha, a caça e morte do leão do monte Citerão. Este animal, de porte fora do comum e de tanta ferocidade, estava causando grandes estragos nos rebanhos de Anfitrião e do rei Téspio, cujas terras eram vizinhas das de Tebas. Como nenhum caçador se atrevesse a enfrentar o monstro, Héracles se dispôs a fazê-lo, transferindo-se, temporariamente, para o reino de Téspio. A caçada ao leão durou cinqüenta dias, porque, quando o Sol se punha, o caçador retornava, para dormir no palácio. Exatamente no qüinquagésimo dia, o herói conseguiu sua primeira grande vitória. Acontece, porém, que Téspio, pai de cinqüenta filhas, e desejando que cada uma tivesse um filho de Héracles, entregava-lhe uma por noite e foi assim que, durante cinqüenta dias, o herói fecundou as cinqüenta jovens, de que nasceram as tespíades. A respeito da divergência do tempo que durou essa proeza sexual do filho de Alcmena já se falou na Introdução, Capítulo I, onde se mostrou, igualmente, que a potência sexual de Héracles não teve competidor, ao menos no mito. É possível que nos civilizados tempos modernos a Surmâle de Jarry lhe possa servir de parâmetro...

Ao retornar do reino de Téspio, Héracles encontrou nas vizinhanças de Tebas os delegados do rei de Orcômeno, Ergino, que vinham cobrar o tributo anual de cem bois, que Tebas pagava a Orcômeno, como indenização de guerra. Após ultrajá-los, o herói cortou-lhes as orelhas e o nariz e, pendurando-os ao pescoço de cada um, os enviou de volta, dizendo-lhes ser este o pagamento do tributo. Indignado, Ergino, com um grande exército, marchou contra Tebas. Héracles desviou o curso de um rio e afogou na planície a cavalaria inimiga. Perseguiu, em seguida, a Ergino e o matou a flechadas. Antes de retirar-se com os soldados tebanos, impôs aos mínios de Orcômeno o dobro do tributo que lhes era pago por Tebas. Foi nesta guerra que morreu Anfitrião, lutando bravamente ao lado do filho. O rei Creonte, grato por tudo quanto o filho de Alcmena fizera por Tebas, deu-lhe em casamento sua filha primogênita  (Nota: Essa é a mais mencionada como esposa de Hércules nas histórias, inclusive nas animações da Disney) , enquanto a caçula se casava com Íficles, tendo este, para tanto, repudiado sua primeira esposa Automedusa, que lhe dera um filho, Iolau. De Héracles e Mégara nasceram oito filhos, segundo Píndaro; três, conforme Apolodoro; sete ou cinco, consoante outras versões. Não importa o número. Talvez o que faça pensar é a reflexão de Apolodoro de que Héracles somente foi pai de filhos homens, como se de um macho quiçá só pudessem nascer machos… (Apol. 2,7,8).

Hera, porém, preparou tranqüilamente a grande vingança. Como protetora dos amantes legítimos, não poderia perdoar ao marido seu derradeiro adultério, ao menos no mito, sobretudo quando Zeus tentou dar a essa união ilegítima com Alcmena o signo da legitimidade (Diod. 4,9,3; Apol. 2,4,8), fazendo o menino sugar o leite imortal da esposa. Foi assim que a deusa lançou contra Héracles a terrível LÚssa (Lýssa), a raiva, o furor, que, de mãos dadas com a °noia (ánoia), a demência, enlouqueceu por completo o herói. Num acesso de insânia, ele acabou matando a flechadas ou lançando ao fogo os próprios filhos. Terminado o morticínio dos seus, investiu contra os de Íficles, massacrando a dois. Sobraram dessa loucura apenas Mégara e Iolau, salvos pela ação rápida de Íficles. Recuperada a razão, o herói, após repudiar Mégara e entregá-la a seu sobrinho Iolau, dirigiu-se ao Oráculo de Delfos e pediu a Apolo que lhe indicasse os meios de purificar-se desse ¢koÚsio$ fÒno$ (akúsios phónos), desse "morticínio involuntário", mas, mesmo assim considerado "crime hediondo", na mentalidade grega. A Pítia ordenou-lhe colocar-se ao serviço de seu primo Euristeu durante doze anos, ao que Apolo e Atená teriam acrescentado que, como prêmio de tamanha punição, o herói obteria a imortalidade. Existem variantes acerca dessa submissão de Héracles a Euristeu, que, aliás, no mito é universalmente tido e havido como um poltrão, um covarde, um deformado física e moralmente. Incapaz, até mesmo, de encarar o herói frente a frente, mandava-lhe ordens através do arauto Copreu, filho de Pélops, refugiado em Micenas. Proibiu, por medo, que Héracles penetrasse no recinto da cidade e, por precaução, mandou fabricar um enorme jarro de bronze como supremo refúgio. E não foi preciso que o herói o atacasse, para que Euristeu "usasse o vaso". Mais de uma vez, como se verá, o rei de Micenas se serviu do esconderijo, só à vista das presas e monstros que lhe eram trazidos pelo filho de Alcmena. Numa palavra: Euristeu, incapaz de realizar mesmo o possível, impôs ao herói o impossível, vale dizer, a execução dos célebres Doze Trabalhos.

Dizíamos, porém, que existem variantes, que explicam de outra maneira a submissão de Héracles ao rei de Micenas. Uma delas relata que Héracles, desejando retornar a Argos, dirigiu-se ao primo e este concordou, mas desde que aquele libertasse primeiro o Peloponeso e o mundo de determinados monstros. Uma outra, retomada pelo poeta da época alexandrina, Diotimo, apresenta Héracles como amante de Euristeu (???!!) . Teria sido por mera complacência amorosa que o herói se submetera aos caprichos do amado, o que parece, aliás, uma ressonância tardia do discurso de Fedro no Banquete de Platão (tinha que ser daí mesmo...) , 179. As variantes apontadas e outras de que não vale a pena falar, bem como a "condição de imortalidade", sugerida ou imposta por Apolo e Atená, provêm simplesmente da reflexão do pensamento grego sobre o mito: a necessidade de justificar tantas provações por parte de um herói idealizado como o justo por excelência. Para as religiões de mistérios, na Hélade, os sofrimentos de Héracles configuram as provas por que tem que passar a psiqué, que se libera paulatina, mas progressivamente dos liames do cárcere do corpo. 96 3 Os Doze Trabalhos são, pois, as provas a que o rei de Argos, o covarde Euristeu, submeteu seu primo Héracles.

Num plano simbólico, as doze provas configuram um vasto labirinto, cujos meandros, mergulhados nas trevas, o herói terá que percorrer até chegar à luz, onde, despindo a mortalidade, se revestirá do homem novo, recoberto com a indumentária da imortalidade. Quanto ao número DOZE, trata-se de algo muito significativo. Para Jean Chevalier e Alain Gheerbrant7 "é o número das divisões espaço-temporais, o produto dos quatro pontos cardeais pelos três níveis cósmicos. Divide o céu, visualizado como uma cúpula, em doze setores, os doze signos do zodíaco, mencionados desde a mais alta antigüidade (...). A combinação de dois números 12x5 origina os ciclos de 60 anos, quando se culminam os ciclos solar e lunar. Doze simboliza, pois, o universo em seu desenvolvimento cíclico espaço-temporal. Configura igualmente o universo em sua complexidade interna. O duodenário, que caracteriza o ano e o zodíaco, representa a multiplicação dos quatro elementos, água, ar, terra e fogo, pelos três princípios alquímicos, enxofre, sal e mercúrio, ou ainda os três estados de cada elemento em suas fases sucessivas: evolução, culminação e involução". Na simbólica cristã, o doze tem um significado todo particular. A combinação do quatro do mundo espacial e do três do tempo sagrado, dimensionando a criação-recriação, produz o número doze, que é o do mundo concluído. Doze é outrossim o número da Jerusalém celeste: 12 portas, 12 apóstolos, 12 cadeiras...; é o número do ciclo litúrgico do ano de doze meses e de sua expressão cósmica, que é o Zodíaco. Para os escritores sagrados doze é o número da eleição, o número do povo de Deus, da Igreja. Jacó gerou doze filhos, ancestrais epônimos das doze tribos de Israel (Gn 35,23sqq.). A árvore da vida estava carregada com doze frutos; os sacerdotes tinham doze jóias. Doze eram os Apóstolos. A Jerusalém celestial do Apocalipse 21,12 estava assinalada com o número doze: "E tinha um muro grande e alto com doze portas; e nas portas doze anjos, e uns nomes escritos, que são os nomes das doze tribos dos filhos de Israel". Logo a seguir, em 21,14, diz o Apocalipse: "E o muro da cidade 78. Op. cit., p. 365sq. 97 tinha doze fundamentos e neles os doze nomes dos doze Apóstolos do Cordeiro". E o doze e seus múltiplos continuam por todo o Capítulo 21. Os fiéis dos fins dos tempos serão 144 000, 12 000 de cada uma das doze tribos de Israel (Ap 7,4-8; 14,1). Também em torno da Távola Redonda do rei Artur sentavam-se doze cavaleiros. Doze é, por conseguinte, o número de uma realização integral, de um fecho completo, de um uróboro. Desse modo, no Tarô, a carta do Enforcado (XII) marca o fim de um ciclo involutivo, seguido pelo da morte (XIII), que deve ser tomado no sentido de renascimento. Mostraremos esse décimo terceiro trabalho de Héracles… Voltemos às fadigas do herói-deus dos Helenos. Os mitógrafos da época helenística montaram um catálogo dos Doze Trabalhos em duas séries de seis. Os seis primeiros tiveram por palco o Peloponeso e os seis outros se realizaram em partes diversas do mundo então conhecido, de Creta ao Hades. Advirta-se, porém, que há muitas variantes, não apenas em relação à ordem dos trabalhos, mas igualmente no que tange ao número dos mesmos. Apolodoro, por exemplo, só admitia dez. Exceto a clava, que o próprio herói cortou e preparou de um tronco de oliveira selvagem, todas as suas demais armas foram presentes divinos: Hermes lhe deu a espada; Apolo, o arco e as flechas; Hefesto, uma couraça de bronze; Atená um peplo e Posídon ofereceu-lhe os cavalos.




Pronto. Espero que tenham achado interessante, o próximo post será dos doze trabalhos. Apesar de ainda ser resumido, é sempre bom ver várias fontes, cada qual acrescenta mais um pouco. Eu recomendaria esse vídeo aqui como um “dever de casa” da “aula” de hoje. Para não ficar muita informação de uma vez só, e melhorar a qualidade, esse post será lançado semanalmente. Até a próxima Terça.




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